esse texto tem uma tarefa difícil e muito específica, vou esclarecer ela antes pra que confusões não sejam feitas.
isso não é um texto pretensiosamente acadêmico, não tenho a pretensão de refutar linha por linha o programa dos partidos comunistas. É uma publicação alternativa, não me interesso em dialogar com os acadêmicos, com as massas ou com o líder do teu partido, até porque, também, muita coisa que eu vou criticar aqui diz mais sobre os ambientes e ciclos comunistas do que sobre as ideias comunistas per se.
Também devo explicar que, aqui, uso comunismo como sinônimo de marxismo, sei muito bem dos limites de usar o termo dessa forma (principalmente porque sou anarquista, e considero o anarquismo uma forma de comunismo que não é necessariamente o comunismo marxista). Uso o termo dessa forma pra facilitar o entendimento. Qual é, vocês sabem bem do que eu to falando.
Quando eu e meus companheiros de banda ainda nos considerávamos integralmente como marxistas, a gente notava uma clara diferença entre nós e os ciclos de juventudes “revolucionárias”. A gente é pobre, sabe o que é passar fome, não somos estudantes da UFRGS, não temos dinheiro pra comprar três edições diferentes dos mesmos livros de sempre e nem precisamos falar da classe operária em terceira pessoa. Quando vendia jornal pra partido, sempre achava mais fácil vender no terminal da minha quebrada do que num desses protestos onde tem um maldito carro de som tocando Chico Buarque.
Como trans eu também sempre me senti deslocada, e isso ocorre por um problema de linha: os comunistas precisam alcançar hegemonia popular para alcançar o programa máximo, mas muitas vezes a forma de fazer isso é através de um recuo de pautas que muitas vezes beira o populismo. Isso é um problema causado pela leitura porca da formação do capitalismo e da luta de classes.
A família, o estado, o patriarcado e todas suas opressões tem uma relação intrínseca com o capitalismo, a família monogâmica e nuclear é a forma que aumenta a eficácia da exploração de classe. O homem (cis e hetero) consegue trabalhar 12 horas se na casa dele a sua esposa fazer o trabalho doméstico que antes era feito pelos escravos enquanto ele tá fora trabalhando.
Os marxistas que fizeram a lição de casa (as vezes parece ser a minoria entre eles) vão saber que não só esses elementos são necessários para a manutenção do capital como eles vão também denunciar essa aberração teórica como uma tentativa de conciliação com a sociedade burguêsa em nome de inserção nas massas.
“Se afastando de questões que julga que “dividem a classe trabalhadora”, perpetua exatamente a sua divisão, já que não existe resolução comunista das divisões da classe trabalhadora por meio da conciliação ou afirmação da opressão, mas unicamente por meio do seu combate. O proletário fragmentado não afirma seu programa histórico; fragmentado, se enfraquece politicamente, fortalecendo sua submissão às burocracias e “intelectualidades” partidárias, pelegagem sindical, projetos “populares” pseudo-radicais diversos (ou seja, o Partido Comunista concilia com estes em nome do “trabalhador”). O proletário fragmentado ataca as LGBTs marginalizadas, seja na sua própria família ou na rua, em nome da sua integração ordeira na sociedade burguesa, sendo instrumento tanto da marginalização quanto de barreira à organização política desse setor do proletariado. Em suma, o proletariado afirma sua posição enquanto proletariado no capitalismo, ao invés de buscar o fim de si mesmo enquanto classe. O Partido Comunista sanciona.” (por Bombardeie o Comitê Central!, um comunista que fez a lição de casa, no texto “O apodrecimento dos Partidos Comunistas. Resposta a “Nossa prática e nossos princípios”, da tribuna do PCB-RR” https://bombardeie.substack.com/p/o-apodrecimento-dos-partidos-comunistas .)
De repente tomar parte na construção revolucionária marxista se torna o inferno: tu é trans e quer somar na superação da sociedade, mas, pra isso, a figura de autoridade do teu partido vai dizer pra tu relevar tuas dores, teu sofrimento e tua opressão por medo de assustar o operário médio – aquele que teve sua mente lavada pela classe dominante. Devemos calar nossas bocas e correr o risco de sermos abusadas nos banheiros masculinos pois o operário médio pode ter acreditado no pastor que nos põe como predadoras, devemos deixar que ele ache que somos homens porque esse operário hipotético também é muito burro, não é iluminado o suficiente para discutir gênero como o playboy da UFRGS que dita linha pra juventude.
As hierarquias sociais que existem fora do “ambiente revolucionário” passam a existir e serem sancionadas ao invés de questionadas e superadas.
O que tu acha que eles vão fazer? Tu acha que eles vão tratar os operários como pessoas portadoras de agência que tem capacidade suficiente pra discutir questões do tipo ou que eles vão só ignorar isso tudo pra ter a ilusão de que tem alguma inserção e dialogo com as massas?
É tudo como uma grande brincadeira. É como quando eles brincam de marginais pichando (com ch) frases revolucionárias sem sequer ter vivência de rua o suficiente pra olhar ou se importar se tão atropelando a tag de alguém na parede (tag de alguém que, de fato, é marginalizada, ocupa a rua e é operário). É como alguns raps e funks “comunistas” feitos por gente sem influência nenhuma nesses gêneros simplesmente por esses serem gêneros populares que “dialogam com as massas”. E tu ainda me pergunta por que que eu parei de me organizar em coisa do tipo?
Existem exceções, é possivel construir um movimento de massas de outra forma.
Uma das guerrilhas que mais avança no momento aborda pautas não-hegemonicas de forma mais madura, não subestima a capacidade intelectual do proletariado e acaba também criando um ambiente seguro onde pessoas trans podem ser acolhidas e os outros operários podem aprender com o tema.
Sim, estou falando da NPA, devo lembrar também que a Ka Daisy (a famosa guerrilheira trans das filipinas) faleceu recentemente, seu legado nos ensinou muito. Mas, infelizmente, essa abordagem parece ser uma excessão, a maior parte dos dirigentes descartariam essa abordagem chamando essa linha de identitária e pós-moderna.
Nós não temos lugar na sociedade, e isso muitas vezes implica dizer que não temos lugar nas juventudes e nos partidos comunistas. A maior parte da esquerda organizada tá muito ocupada reforçando o senso-comum em nome da hegemonia e vai continuar sem se importar nem um pouco em acolher as minorias baleadas na linha de fogo da moral e da sociedade burguesa.